quarta-feira, 10 de outubro de 2018

MIOPIA















Fui ao oftalmologista Edgar e percebi que o MUNDO visto em letras garrafais por alguns, é bem diferente do MuNdO visto por outros. Ele me explicou em detalhes, e ainda me disse:

- Essa é a visão que o míope vê! Dar pra você imaginar do que estou falando?
- Sim!

Antes de irmos para os aparelhos principais da consulta, o oftalmologista Edgar pediu-me para identificar no globo terrestre do seu consultório, o nome dos países que estavam minúsculos, turvos e espalhados naquela esfera de plástico; países que no século XX e de outras épocas, foram colonizados e escravizados, e muitos ainda estavam sendo dominados por ditadores, fascistas que pregavam uma “falsa” verdade e ameaçava a democracia.

Quando eu fui para a lâmpada de fenda (biomicroscópio ocular), numa das lentes que o oftalmologista Edgar inseriu, eu assistia a cena no DOI-CODI em 1968, dias após o estabelecimento do temível AI-5 que minha visão míope não queria ver, porque a dor adentrava em meu corpo:

- Onde está a Sônia e o Eduardo?
 - Eu não sei.
- Fiquei sabendo que você é um excelente pianista, e gosta muito de tocar Beethoven, Bach, Mozart, Chopin. Isso é verdade?
- Sim, é verdade...
- Sargento Ferrugem, traga aquele alicate que está em cima da mesa. Agora você vai me dizer quem era o “cabeça” dos movimentos revolucionários estudantis? Você vai falar?
- Eu não sei, e mesmo se eu soubesse, eu não irei dizer o local dos encontros, os nomes. Porque eu não sou um traidor.

“Ditadura Militar NUNCA Mais!”, dizia minha consciência subalterna de mim, para que eu tirasse de minha visão, aqueles choques elétricos, mulheres sendo torturadas na frente dos seus filhos pequenos pelos cruéis militares; corpos nus ensanguentados sendo expostos nos paus-de-arara; alguns dedos sendo arrancados das mãos com tamanha brutalidade, para que a música clássica não pudesse ser tocada pelos ágeis dedos do pianista.

Em memória de Stuart, Zuzu Angel, Frei Tito, entre tantos mortos e desaparecidos políticos. Zuzu, eu sei o que seu filho passou na mão daqueles torturadores. Aquilo doía dentro de mim feito uma parte trágica da “Nona Sinfonia” de Beethoven, e para amenizar a minha tensão psicológica, em outras lentes de aumento continham cenas românticas, a exemplo do primeiro beijo doce e sereno daquele casal depois de muitos encontros e conversas.

Foi aí que eu me lembrei do dia que eu conheci a Olga, uma das últimas vezes que eu a encontrei, passando na mesma rua, perpendicular a minha, desabafei-me, ou melhor, desabei-me em estilhaços aos seus pés, tendo o zelo de não cortá-la:

- Olga, lembra aquele dia que lhe vi e não pude lhe cumprimentar?
- Sim, eu lembro! Aquele dia eu fiquei com muita raiva de ti, você passou por mim sem me perceber.
- Perdoe-me, é porque eu estava sem óculos, Olga! E você estava bem distante, não pude perceber o que era aquilo; ou se aquilo era você.

Meu oftalmologista logo me perguntou, fazendo-me retornar a realidade, da lembrança ao presente:

- O que seria “aquilo”?
- Aquilo são as imagens turvas que vejo quando estou sem óculos. Têm imagens que me vem repentinamente iguais às cenas tidas no DOPS, e têm muitas imagens turvas que não me lembro de ter ocorrido, mas eu tenho certeza que estive ali: é como se fosse um déjà vu.
- E o que a Olga disse?
- No fim de tudo, ela consentiu em compreender a minha miopia. Abraçamo-nos fortemente. Eu continuei seguindo o meu caminho, e acredito que Olga também tenha prosseguido adiante.
- Você chegou a dizer para a Olga o quanto a amava?
- Não deu tempo de dizê-la!
- Saiba que às vezes não precisamos de lentes de aumento para enxergar a verdade escrita a nossa frente. O nosso coração nos diz, o que a mente pressente!
- E eu me arrependo até hoje de não ter dito. Queria tanto reencontrá-la; abraçá-la; olhá-la mesmo sendo a última vez, e dizê-la que a culpa foi minha do tempo que perdemos de não termos ficado juntos.
- Não se culpe sozinho! Ambos têm uma parcela de culpa. Estava chovendo, na última vez que você a encontrou? – Perguntava o oftalmologista Edgar.
- Sim, estava chovendo, não tão forte! E a Olga estava com um guarda chuva. De longe eu a avistei, pois agora eu estava com os óculos. Dirigi-me ao encontro dela e disse:
 - Oi... - E a Olga me respondeu:
- Ei, desculpe, mas agora eu estou com pressa! Vamos combinar depois de tomarmos um café juntos, assim, nós podemos conversar melhor... com calma, tudo bem?
- Sim! E pode ser no Café Flore?
- Pra mim, tudo bem!
- Encontro marcado então, Olga!
- Te encontro antes das seis, amanhã!

Mas a Olga desapareceu de uma hora pra outra, sem deixar registros, bilhetes, alguma carta; perfume maciço do seu corpo no meu cobertor; fios do seu cabelo em meu travesseiro: e o seu desaparecimento já faz cinquenta anos. Aliás, até hoje eu não sei se o meu oftalmologista Edgar é de fato um oftalmologista ou o meu psicanalista: ou quem sabe ambas.

Ainda tenho sérias cicatrizes daquela época!!

(Carlos André)

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