Fui ao oftalmologista
Edgar e percebi que o MUNDO visto em letras garrafais por alguns, é bem diferente
do MuNdO visto por outros. Ele me explicou em detalhes, e ainda me disse:
- Essa é a visão que o
míope vê! Dar pra você imaginar do que estou falando?
- Sim!
Antes de irmos para os
aparelhos principais da consulta, o oftalmologista Edgar pediu-me para
identificar no globo terrestre do seu consultório, o nome dos países que
estavam minúsculos, turvos e espalhados naquela esfera de plástico; países que
no século XX e de outras épocas, foram colonizados e escravizados, e muitos
ainda estavam sendo dominados por ditadores, fascistas que pregavam uma “falsa”
verdade e ameaçava a democracia.
Quando eu fui para a
lâmpada de fenda (biomicroscópio ocular), numa das lentes que o oftalmologista
Edgar inseriu, eu assistia a cena no DOI-CODI em 1968, dias após o
estabelecimento do temível AI-5 que minha visão míope não queria ver, porque a
dor adentrava em meu corpo:
- Onde está a Sônia e o
Eduardo?
- Eu não sei.
- Fiquei sabendo que
você é um excelente pianista, e gosta muito de tocar Beethoven, Bach, Mozart,
Chopin. Isso é verdade?
- Sim, é verdade...
- Sargento Ferrugem,
traga aquele alicate que está em cima da mesa. Agora você vai me dizer quem era
o “cabeça” dos movimentos revolucionários estudantis? Você vai falar?
- Eu não sei, e mesmo
se eu soubesse, eu não irei dizer o local dos encontros, os nomes. Porque eu
não sou um traidor.
“Ditadura Militar NUNCA
Mais!”, dizia minha consciência subalterna de mim, para que eu tirasse de minha
visão, aqueles choques elétricos, mulheres sendo torturadas na frente dos seus
filhos pequenos pelos cruéis militares; corpos nus ensanguentados sendo
expostos nos paus-de-arara; alguns dedos sendo arrancados das mãos com tamanha
brutalidade, para que a música clássica não pudesse ser tocada pelos ágeis
dedos do pianista.
Em memória de Stuart,
Zuzu Angel, Frei Tito, entre tantos mortos e desaparecidos políticos. Zuzu, eu
sei o que seu filho passou na mão daqueles torturadores. Aquilo doía dentro de
mim feito uma parte trágica da “Nona Sinfonia” de Beethoven, e para amenizar a
minha tensão psicológica, em outras lentes de aumento continham cenas
românticas, a exemplo do primeiro beijo doce e sereno daquele casal depois de
muitos encontros e conversas.
Foi aí que eu me
lembrei do dia que eu conheci a Olga, uma das últimas vezes que eu a encontrei,
passando na mesma rua, perpendicular a minha, desabafei-me, ou melhor,
desabei-me em estilhaços aos seus pés, tendo o zelo de não cortá-la:
- Olga, lembra aquele
dia que lhe vi e não pude lhe cumprimentar?
- Sim, eu lembro!
Aquele dia eu fiquei com muita raiva de ti, você passou por mim sem me
perceber.
- Perdoe-me, é porque
eu estava sem óculos, Olga! E você estava bem distante, não pude perceber o que
era aquilo; ou se aquilo era você.
Meu oftalmologista logo
me perguntou, fazendo-me retornar a realidade, da lembrança ao presente:
- O que seria “aquilo”?
- Aquilo são as imagens
turvas que vejo quando estou sem óculos. Têm imagens que me vem repentinamente
iguais às cenas tidas no DOPS, e têm muitas imagens turvas que não me lembro de
ter ocorrido, mas eu tenho certeza que estive ali: é como se fosse um déjà vu.
- E o que a Olga disse?
- No fim de tudo, ela
consentiu em compreender a minha miopia. Abraçamo-nos fortemente. Eu continuei
seguindo o meu caminho, e acredito que Olga também tenha prosseguido adiante.
- Você chegou a dizer
para a Olga o quanto a amava?
- Não deu tempo de
dizê-la!
- Saiba que às vezes
não precisamos de lentes de aumento para enxergar a verdade escrita a nossa
frente. O nosso coração nos diz, o que a mente pressente!
- E eu me arrependo até
hoje de não ter dito. Queria tanto reencontrá-la; abraçá-la; olhá-la mesmo
sendo a última vez, e dizê-la que a culpa foi minha do tempo que perdemos de
não termos ficado juntos.
- Não se culpe sozinho!
Ambos têm uma parcela de culpa. Estava chovendo, na última vez que você a
encontrou? – Perguntava o oftalmologista Edgar.
- Sim, estava chovendo,
não tão forte! E a Olga estava com um guarda chuva. De longe eu a avistei, pois
agora eu estava com os óculos. Dirigi-me ao encontro dela e disse:
- Oi... - E a Olga me respondeu:
- Ei, desculpe, mas agora
eu estou com pressa! Vamos combinar depois de tomarmos um café juntos, assim,
nós podemos conversar melhor... com calma, tudo bem?
- Sim! E pode ser no
Café Flore?
- Pra mim, tudo bem!
- Encontro marcado
então, Olga!
- Te encontro antes das
seis, amanhã!
Mas a Olga desapareceu
de uma hora pra outra, sem deixar registros, bilhetes, alguma carta; perfume
maciço do seu corpo no meu cobertor; fios do seu cabelo em meu travesseiro: e o
seu desaparecimento já faz cinquenta anos. Aliás, até hoje eu não sei se o meu
oftalmologista Edgar é de fato um oftalmologista ou o meu psicanalista: ou quem
sabe ambas.
Ainda tenho sérias
cicatrizes daquela época!!
(Carlos André)
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